Editora: Verus
Páginas: 350
Classificação: 5/5 estrelas
Contem spoilers
Que a literatura tem o poder de nos transportar para dimensões paralelas, despertar uma imensidão de emoções e nos fazer questionar o universo, qualquer leitor aficionado sabe. No entanto, alguns livros –- estes mais raros, eu diria – nos marcam de maneira especial, presenteando-nos com experiências de quase catarse. Quarto, romance publicado pela Verus Editora e escrito por Emma Donoghue, é uma dessas obras únicas.
A história, que foi adaptada para o cinema no fim de 2015, em um longa aclamadíssimo que abocanhou quatro indicações ao Oscar, inclusive o de Melhor Filme, segue Jack, um menino de cinco anos confinado junto à sua mãe dentro de um quarto. Foi no Quarto onde ele viveu toda sua vida e, para a criança, lá é tudo que existe –- do Guarda-Roupa em que dorme ao Teto e à Cama e ao Tapete e ao Termostato. A Mãe foi sequestrada pelo Velho Nick quando tinha 19 anos, sete anos atrás, e trancafiada naquele cômodo, onde é frequentemente estuprada. Sob todas as dificuldades, porém, a Mãe criou Jack dando-o o máximo que pôde, concebendo um universo próprio para ele, em que não sofresse tanto… Mas a vida no Quarto não basta; nunca poderia, por mais que tentasse se enganar. Então, a Mãe elabora um complicado plano de fuga. Nada é mais o mesmo daí em diante.
É esquisito ter uma coisa que é minha e não é da Mãe. O resto tudo é de nós dois. Acho que o meu corpo é meu, e as ideias que acontecem na minha cabeça. Mas as minhas células são feitas de células dela, quer dizer que eu sou meio dela. E também, quando eu digo pra ela o que estou pensando e ela diz pra mim o que está pensando, nossas ideias de cada um pulam na cabeça do outro, que nem lápis de cera azul em cima do amarelo, que dá verde.
Para começar, a narrativa de Quarto, conduzida pelo próprio Jack, é sensacional, e um dos motivos pelo quais o livro é especialmente singular. A ótica do protagonista nos faz perceber a história de um modo arrasador; o menino, não por menos, é uma das figuras literárias mais bem escritas que eu pude conhecer nos últimos tempos e acompanhar o desenrolar da trama sob seu comando foi visceral.
Tudo que envolve a narrativa (às vezes tão puramente poética quanto possível) é, aliás, bastante original, a começar pelo fato de que enredos como esse, envolvendo abuso e dramas delicados, geralmente são conduzidos por personagens adultos (no geral mulheres) e não por crianças, que é justamente o caso dessa obra. Isso acontece não porque seja mais cômodo para o escritor, mas porque, se ele não for dotado de técnica muito apurada, optar por um narrador infantil, e uma prosa em primeira pessoa, ainda por cima, requer coragem; é dificílimo transpor para o papel a mente de uma criança, havendo uma imensa probabilidade de se soar inconvincente, falso. Daí a proeza de Emma Donoghue: ela não apenas abraçou o desafio de escrever Quarto aos olhos de Jack, como fez um excelente trabalho nisso; mergulhou na visão dele e nos fez acreditar sem reservas que essa história É contada pelo menino. As aflições, os devaneios, as relações que Jack faz do universo, as escolhas verbais… Todos os aspectos são exemplarmente bem escritos. Todos.
Chamo atenção para alguns detalhes: a relação de Jack com a mãe, que é muito complexa; o modo com que a autora trouxe elementos contemporâneos como Dora, A Aventureira para a história, causando aproximação de cara com o leitor; o fato de objetos/espaços do Quarto ganharem status de substantivo próprio e não serem apenas “comuns”, contribuindo pra esclarecer que, para Jack, eles eram de fato seu mundo, tudo que tinha – a Claraboia e o Teto e a Planta; o núcleo da clínica, que é muito legal; o avô que não sabe lidar com Jack; e a avó, lutando para se manter firme mesmo diante das novidades, lutando para fazer tudo certo, mesmo quando o certo é tão tênue.
Agora eu estou no Lá Fora, mas acontece que um monte dele não tem nada de real.
Por Jack, Emma nos permite observar nosso próprio mundo “civilizado” fora da claustrofobia do Quarto, apenas para revelar incoerências que, de tão sutis, nos passam despercebidas na rotina caótica do dia-a-dia: o pai que tira foto da criança brincando e, no entanto, não quer brincar com ela; o adulto correndo, em permanente estado de tensão, imparável, “sem tempo pra nada”… Com o garoto, a gente também redescobre o extraordinário envolta de elementos banais da nossa cultura; o livro gratuito da biblioteca, as vitrines da lojas, o “não converse com estranhos” e o universo do capital, em que tudo se tem com dinheiro às mãos.
– Agora eu tomo banho sozinho – contei. – Brinquei de balanço e conheci o dinheiro e o fogo e os moradores de rua, e tenho dois Dylans, os Escavadores, e uma consciência e sapatos de esponja.
E, na verdade, um dos trunfos do livro é exatamente fazer com que enxerguemos nossa realidade através do filtro muitíssimo especial de uma criança de cinco anos obrigada a vivenciar coisas dolorosas, mas repleta de vida, dedicada a entender e ressignificar o mundo – o seu mundo – como pode, ainda que nem se dê conta desse processo. Nesse emaranhado de fugas e descobertas e novos começos e despedidas que é Quarto, nós refletimos sobre tudo um pouco, vibramos como torcedores malucos num imenso Coliseu e, no final, a única certeza é a de que não dá para sair alheio a este romance, mesmo que tentássemos.
Os olhos dela estavam todos brilhando e muito grandes.
– É, e eu nasci nele e também morri nele.
Esse livro é lindo. Me acabei de chorar quando o li. O filme também é maravilhoso.
Um dos livros mais incríveis que li na vida. Todos deveriam ler.